A Simplicidade da Moradia Por Assinatura
Publicado pela “Opinião Jurídica – Direito Imobiliário”
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- Breve Contexto Histórico e Social
O modelo de negócios “por assinatura” tem ganhado destaque em diversas indústrias, desde o surgimento da internet e do streaming. Exemplos incluem plataformas de conteúdo, softwares e até produtos físicos oferecidos mediante assinatura. Esse modelo expandiu-se para setores como academias, impulsionado por avanços tecnológicos e mudanças nos hábitos de consumo, especialmente durante a pandemia.
No mercado imobiliário brasileiro, em resposta à busca por soluções menos burocráticas e mais sustentáveis, surgiu a “moradia por assinatura”. Esse modelo simplifica a divulgação, acessibilidade e formalização de contratos, proporcionando flexibilidade aos moradores. O pagamento de uma taxa periódica concede acesso contínuo a espaços de moradia e serviços, apresentando uma alternativa à aquisição definitiva de imóveis.
A flexibilidade da moradia por assinatura permite que os moradores desfrutem do compartilhamento de espaços, com a disponibilização de serviços sem os rigores burocráticos usuais de uma contratação tradicional, oferecendo períodos variáveis, serviços domésticos inclusos e a opção de troca de imóvel dentro da mesma rede de locação. Essa evolução segue a tendência observada em outros setores, como os espaços de escritórios flexíveis (coworkings) e as locações de curtíssima temporada por meio de plataformas digitais.
Nesse contexto, em diversas situações os tribunais brasileiros se depararam com situações específicas em que se valeram da criação de um conceito distinto da moradia por assinatura, que é a “hospedagem atípica“, mais amplamente verificada em outro artigo, destacando que a moradia por assinatura é uma forma distinta de compartilhamento de espaços residenciais.
- Arcabouço Legal
João Matos Antunes Varela (2000) assevera que:
[…] o preceito básico que continua a servir de trave-mestra da teoria dos contratos é o da liberdade contratual. A liberdade contratual consiste na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que realizarem, celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. [1]
O primeiro recurso para disponibilização de espaços para estadias curtas é a locação de imóvel urbano residencial por temporada, conforme estabelecido nos artigos 48 e seguintes da Lei de Locações (Lei Federal nº 8.245/1991). No entanto, é possível que esses compartilhamentos de espaço não estejam totalmente regulamentados pela Lei de Locações.
O parágrafo único do artigo 1º da Lei de Locações estipula que locações em apart-hotéis, hotéis-residência ou similares, que ofereçam serviços regulares e sejam autorizados a funcionar, continuam regulados pelo Código Civil e leis especiais. Diante disso, os contratos de moradia por assinatura, que incluem serviços como limpeza, lavanderia e internet, não se enquadram propriamente na Lei de Locações.
Alguns afirmam que a moradia por assinatura pode ser considerada semelhante a hotéis, pousadas e flats, sujeita à Política Nacional de Turismo (Lei Federal nº 11.771/2008). No entanto, ao examinarmos as definições legais, observamos que o turismo, nos termos do artigo 2º, parágrafo único da referida lei, envolve atividades promovendo diversidade cultural e preservação da biodiversidade. Muitas das contratações de compartilhamento de espaços por meio de plataformas digitais não contribuem para a diversidade cultural e preservação da biodiversidade, não se enquadrando, portanto, nas atividades sujeitas à Política Nacional de Turismo.
Assim, a Lei de Locações exclui locações com serviços regulares de sua regulamentação, enquanto a Política Nacional de Turismo requer que atividades regulamentadas promovam diversidade cultural e preservação da biodiversidade. Isso abre espaço para o desenvolvimento de contratos ou conjuntos contratuais regidos por princípios gerais do Código Civil Brasileiro.
A diversificação dos serviços oferecidos pelo proprietário do imóvel levou o mercado a criar soluções além da tradicional locação de coisas definida no artigo 565 do Código Civil Brasileiro[2]. Essa evolução contratual abrange diversos fornecimentos, incluindo bens imóveis, móveis e serviços, resultando em situações jurídicas diversas.
O surgimento desses modelos de negócios ocorre paralelamente à implementação da Lei Federal nº 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica. Essa legislação promove o princípio da livre iniciativa, garantindo a liberdade no exercício de atividades econômicas, a boa-fé do particular perante o poder público, a intervenção subsidiária e excepcional do Estado nas atividades econômicas, e o reconhecimento da vulnerabilidade do particular diante do Estado.
Apesar da liberdade proporcionada pela Lei de Liberdade Econômica, esta também estabelece limites. A legislação lista restrições relacionadas a normas ambientais, poluição sonora, perturbação do sossego público, contratos, regulamentos condominiais, negócios jurídicos e legislação trabalhista[3]. Algumas dessas limitações têm implicações particulares no mercado imobiliário.
O mercado imobiliário está testemunhando uma tendência em que a maior autonomia na escolha do local de trabalho para os colaboradores tem influenciado as pessoas a procurarem soluções de moradia mais personalizadas, que atendam às suas prioridades, incluindo facilidades na utilização do imóvel, flexibilidade de prazos e opções de endereços para locação.
Nesse ponto, não podemos deixar de mencionar a liberdade expressamente reconhecida pelo Código Civil Brasileiro de as partes estipularem contratos atípicos[4], isto é, contratos que, nas palavras de Silvio Rodrigues (2000), “a lei não disciplina expressamente, mas que são permitidos, se lícitos, em virtude da autonomia privada. Surgem na vida cotidiana impostos pela necessidade do comércio jurídico”.[5]
Nesse contexto social e jurídico vemos surgir uma nova forma de relacionar com o local da moradia ou da residência, nos remetendo à lição de Caio Mário da Silva Pereira (2017):
[…] Que é, então, residência? É o lugar de morada normal, o local em que a pessoa estabelece uma habitação. Fazendo distinção que auxilia a compreender, Ruggiero instituiu uma gradação, morada, residência, domicílio. Aproveitando em parte seu raciocínio, vemos na residência a morada de quem chega e fica; não é pousada eventual de quem se abriga em um lugar para partir de novo. O que aluga uma casa em uma zona de praia, para passar o verão, tem ali a morada, mas não tem residência. Esta pressupõe estabilidade, que pode ser maior ou menor. Estabilidade relativa. [grifos nossos][6]
Portanto, a morada, a residência e o domicílio se distinguem, especialmente, por seu grau de estabilidade, sendo, da menos estável para a mais estável a seguinte ordem: morada, residência e domicílio.
Nesse ponto, vemos que contratos de moradia por assinatura se diferenciam das locações residenciais convencionais reguladas pela Lei de Locações. A moradia por assinatura não possui a mesma estabilidade da residência, permitindo a troca do imóvel, e frequentemente inclui a prestação ou disponibilização de serviços específicos.
A moradia por assinatura, embora compartilhe características semelhantes com meios de hospedagem, não se classificaria como tal sob a Política Nacional de Turismo. A distinção decorre da falta de contribuição para a promoção da diversidade cultural e preservação da biodiversidade.
O elemento central no contrato de moradia por assinatura no mercado brasileiro é, sem dúvida, o compartilhamento de espaço. Esse compartilhamento pode ser equiparado ao contrato de locação de imóvel urbano residencial da Lei de Locações, mas essa atribuição segue uma lógica jurídica específica, que verificamos a seguir.
O Código Civil Brasileiro traz no art. 656 as linhas gerais das locações de coisas (bens), em geral, nos seguintes termos:
Art. 656. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição. [grifos nossos].
Em resumo, de acordo com o Código Civil Brasileiro, o contrato de locação de imóvel é composto pelos seguintes elementos: (i) partes envolvidas; (ii) o bem a ser cedido, geralmente um imóvel; (iii) a concessão do uso e gozo desse bem de uma parte para outra; e (iv) a contrapartida financeira, representada pelo aluguel.
O artigo 2.036 do Código Civil Brasileiro[7] reconhece que a locação de prédio urbano é regida por lei especial, validando o regime estabelecido pela Lei de Locações. O artigo 1º, parágrafo único[8], da Lei de Locações menciona as exceções, como locações de imóveis públicos, vagas de garagem, espaços publicitários, apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados (que prestam serviços regulares autorizados a funcionar) e o arrendamento mercantil. Todas essas modalidades permanecem sob o regime do Código Civil Brasileiro e leis especiais.
A moradia por assinatura se diferencia da Lei de Locações ao reunir diversas contratações, incluindo facilidades, em um único instrumento. Ainda que incorporando elementos de contratos de locação residencial, mesmo por temporada, a moradia por assinatura assume uma configuração específica e distinta. Nas palavras de Caio Mario da Silva Pereira (2003):
A partir de uns e outros, diz-se misto o contrato que alia tipicidade e atipicidade, ou seja, aquele em que as partes imiscuem em uma espécie regularmente dogmatizada criados por sua própria imaginação, desfigurando-a em relação ao modelo original. [9]
Álvaro Villaça Azevedo (2019) vai além: “Entendo, todavia, que os contratos que se formam de elementos de vários contratos típicos não são típicos, mas atípicos mistos como adiante demonstrarei.”[10]. Mais adiante, na mesma obra, ele assevera que:
[…] o somatório de dois ou mais contratos completos, em que circunstâncias sejam, não possibilita a consideração de cada avença como típica; isso porque as prestações desses contratos mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação. Todas as obrigações assumidas formam um só contrato, misto, ensejando sua rescisão, por exemplo, o descumprimento culposo de qualquer delas.
A moradia por assinatura incorpora elementos da locação de imóveis urbanos residenciais por temporada, tradicionalmente um contrato típico. No entanto, com a adição de elementos imaginativos introduzidos pelos provedores para atender às demandas dos moradores, a moradia por assinatura se configura como um contrato atípico misto. Este novo formato combina diferentes contratos, eventualmente tipificados, em uma única e inovadora modalidade contratual, distinta das demais.
José Pacheco (1993), logo após a edição da Lei de Locações, que é de 1991, ensina que:
Hoje em dia, longe estamos do classicismo contratual, que muito embalde, procuram reviver. Querer mantê-las intactas é ficar inerme e, depois boquiaberto coma a transformação inevitável.
O melhor seria compreender os tempos novos e não falar sempre em “contrato de locação” para todos os casos de uso remunerado e prédio. Enquanto a tendência for para a destinação, o intérprete deve distinguir.[11]
Portanto, os contratos de moradia por assinatura devem ser claros e objetivos, assegurando que as partes tenham total compreensão de seus direitos e deveres recíprocos, especialmente em relação aos valores cobrados e pagos por cada serviço específico.
- Conclusão
Em resumo, os aspectos jurídicos da moradia por assinatura revelam um cenário inovador e dinâmico, destacando sua incompatibilidade com a regulamentação existente. Essa modalidade demanda uma abordagem jurídica adaptada, conferindo-lhe o caráter de verdadeiro contrato atípico.
Diferenciando-se da locação tradicional, a moradia por assinatura exige um equilíbrio entre a flexibilidade para os moradores e a garantia da estabilidade de seus direitos. O papel dos operadores do direito será crucial na definição das diretrizes para essas novas formas de contratação habitacional, que continuarão a evoluir com avanços tecnológicos, modelos de negócios inovadores e mudanças sociais.
Assim, os profissionais do direito e os participantes do mercado imobiliário devem focar na criação de um arcabouço jurídico que proteja tanto provedores quanto moradores, promovendo um equilíbrio justo e sustentável.
[1] VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 10 ed. v. 1. Coimbra: Almedina, 2000, p. 230-232.
[2] Código Civil Brasileiro: Art. 565. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição. [grifos nossos]
[3] Lei Federal nº 13.874/2019: Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica; II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas: a) as normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público; b) as restrições advindas de contrato, de regulamento condominial ou de outro negócio jurídico, bem como as decorrentes das normas de direito real, incluídas as de direito de vizinhança; e c) a legislação trabalhista; [grifos nossos]
[4] Código Civil Brasileiro: Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
[5] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3, p. 34.
[6]PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil – v. I / Atual. Maria Celina Bodin de Moraes, 30. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, págs. 309-310
[7] Código Civil Brasileiro: Art. 2.036. A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida.
[8] Lei de Locações: Art. 1º A locação de imóvel urbano regula – se pelo disposto nesta lei: […]
Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais: a) as locações: 1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações públicas; 2. de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos; 3. de espaços destinados à publicidade; 4. em apart- hotéis, hotéis – residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar; b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.
[9] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 11 ed. atual. por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, p. 14.
[10] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos. 4ª ed. São Paulo. Saraiva, 2019. v. 3, p. 204.
[11] PACHECO, José da Silva. Tratado das locações, ações de despejo e outras. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 134.